"Tomo o carro, parto para férias. Não irei à aldeia senão um ou dois dias - apetece-me andar. Não tenho projetos, não procuro nada, exceto estar só, eu só, soldado à máquina, nesta pura fuga de vertigem, nesta fuga de nada, nesta quente sedução de esquecer. Estradas abertas, campos abertos, a alegria à minha volta, evidente, natural como a luz do céu. O carro gira vertiginosamente, o motor zumbe como uma obsessão, espectros de casas, à beira da estrada, outros carros que se cruzam com o meu num mundo reinventado a alucinação. Mas eu estou calmo e leve como quem transforma um risco num jogo. Dos restos do que passou, dos pedaços em que me quebrei, de tudo o que bateu à minha porta, à pessoa que me habita, a memória sobe, purifica-se, aquieta-se à minha volta, penetra-me o sangue, estabelece-se em harmonia, como se fosse de amanhã, como se fosse já de agora que revivo à luz da noite. Atravesso Lisboa, tomo a estrada de Sintra - que maldição pesa sobre a assunção do nosso destino?, sobre o nosso confronto connosco mesmos?, sobre a evidência da nossa condição? O sol desce para os lados do mar, rasa o campo aberto que vou atravessando, "Que esperas tu da vida?"
Vergílio Ferreira, Aparição