Segundo Samuel Huntington, a seguir à Guerra Fria sucedeu um “choque de civilizações”. Refletindo sobre a catástrofe de 11 de setembro, muitos observadores consideram que o mundo se dividiu em dois: de um lado, o campo da liberdade e da democracia, do outro, o campo do despotismo e do extremismo religioso. Este modo de interpretar a realidade, apesar de maniqueísta, não deixa de suscitar algumas questões pertinentes, num tempo em que o confronto entre as democracias do mundo ocidental e os grupos extremistas religiosos – como é o caso do autodenominado Estado Islâmico – se agudiza.
Uma dessas questões prende-se com a forma pela qual os laços sociais das comunidades se criam. A religião, sobretudo nas sociedades tradicionais, tem por função dar coesão às comunidades, proporcionando-lhes segurança contra os choques externos, garantindo os mecanismos de reprodução social. Porém, para além da religião, há a considerar a política – enquanto governo de uma comunidade, de uma polis – como a outra forma de criar e manter os laços de coesão social.
Colocada a questão nestes termos, não será exagerado apontar o mundo árabe como o mundo em que a religião joga um papel preponderante na sociedade, mantendo a supremacia sobre a política. A lei, por exemplo, não pode contrariar o islão, estando-lhe subordinada. Neste sentido, a religião (re ligare = tornar a ligar) desempenha claramente a sua função de ligação e coesão social. A civilização islâmica tem origem numa crença religiosa comum, inspirada num texto sagrado, e define-se a si mesma em termos de submissão (islam = submissão), não em termos de liberdade. O muçulmano é aquele que se entregou, se submeteu e assim obteve segurança.
Apesar de a civilização ocidental também ter tido a sua origem numa fé comum e num texto sagrado, pôs de parte a sua crença e o seu texto sagrado para depositar a sua confiança, não nas certezas e dogmas da fé, mas no debate aberto, na experimentação científica e na omnipresença da dúvida. Há, com efeito, uma clara separação entre o plano do religioso e do político, na maioria, se não na totalidade, dos países do mundo ocidental. A Grécia antiga constitui o berço da civilização ocidental, uma civilização que soube ver na palavra e no (bom) uso da retórica, aliada à democracia, a nova arma de conquista do poder. Enquanto a religião exige uma obediência cega, o processo político oferece participação, debate e uma legislação baseada no consentimento. O consentimento manifesta-se de duas formas: por um “contrato social”, no qual cada indivíduo acorda com todos os outros os princípios da governação, e por um processo político através do qual todos os indivíduos participam na feitura e no exercício da lei. Nisto se exprime a cidadania.