Giges e Candaules: a beleza da rainha, de Jean-Leon Gerome
É na senda de uma resposta à questão “Por que havemos de ser morais?” que Platão, no Livro II da “República”, coloca na boca de Gláucon, um dos interlocutores, as seguintes palavras formuladas em forma de conclusão:
“E disto se poderá afirmar que é uma grande prova de que ninguém é justo por sua vontade, mas constrangido, por entender que a justiça não é um bem para si, individualmente, uma vez que, quando cada um julga que lhe é possível cometer injustiças, comete-as. Efectivamente, todos os homens acreditam que lhes é muito mais vantajosa, individualmente, a injustiça do que a justiça.”
Na opinião de Gláucon, todos nos comportaríamos como Giges se pudéssemos escapar impunemente.
Giges “era um pastor que servia em casa do que era então soberano da Lídia. Devido a uma grande tempestade e tremor de terra, rasgou-se o solo e abriu-se uma fenda no local onde ele apascentava o rebanho. Admirado ao ver tal coisa, desceu por lá e contemplou, entre outras maravilhas que para aí fantasiam, um cavalo de bronze, oco, com umas aberturas, espreitando através das quais viu lá dentro um cadáver, aparentemente maior do que um homem, e que não tinha mais nada senão um anel de ouro na mão. Arrancou-lho e saiu. Ora, como os pastores se tivessem reunido, da maneira habitual, a fim de comunicarem ao rei, todos os meses, o que dizia respeito aos rebanhos, Giges foi lá também, com o seu anel. Estando ele, pois, sentado no meio dos outros, deu por acaso uma volta ao engaste do anel para dentro, em direcção à parte interna da mão, e, ao fazer isso, tornou-se invisível para os que estavam ao lado, os quais falavam dele como se se tivesse ido embora. Admirado, passou de novo a mão pelo anel e virou para fora o engaste. Assim que o fez, tornou-se visível. Tendo observado estes factos, experimentou, a ver se o anel tinha aquele poder, e verificou que, se voltasse o engaste para dentro, se tornava invisível; se o voltasse para fora, ficava visível. Assim senhor de si, logo tratou de ser um dos delegados que iam junto do rei. Uma vez lá chegado, seduziu a mulher do soberano, e com o auxílio dela, atacou-o e matou-o, e assim se assenhoreou do poder.” República. Lisboa: Gulbenkian, 4ª ed., 1983, pp. 55-60.
Giges, sob o “escudo” da invisibilidade, deixou de orientar as suas acções pela “bússola” dos valores.
Uma vez removidas a possibilidade de ser descoberto e, consequentemente, punido, passa a desempenhar o papel de um vilão.
Haverá, afinal de contas, algum mal nisso?
Por que razão havemos de ser morais, sobretudo se o comportamento imoral pode ser vantajoso para o agente?