
“Frankenstein”.
Não se trata, seguramente, do filme das nossas vidas. Nem será, porventura, a melhor forma de terminar uma viagem de dois anos pelos caminhos iniciáticos da Filosofia. Uma viagem, quiçá, longa e “tenebrosa” para uns, breve, “enriquecedora” e emocionante, para outros.
Trata-se, seguramente, da viagem mais importante das nossas vidas.
A viagem encetada por quem ousa pensar, por quem se atreve a dizer não - porque o gesto do não sacode cabeças e consciências adormecidas por uma qualquer rotina ou por uma qualquer herança cultural;
enfim, a viagem encetada por quem questiona, de um modo radical, a realidade e o ser.
Porém, somente pôde ou desejou embarcar nessa alucinante viagem quem teve a capacidade de se “espantar”, pois o espanto, a admiração e a dúvida impelem o ser humano na demanda do conhecimento e da sabedoria. Ainda que esta consista no reconhecimento da sua ignorância.
Aquele que não tem dúvidas, não procura o saber porque se considera, desde já, sábio. Todavia, aventura-se nas margens da errância, sem disso ter consciência.
Agora que foram percorridos muitos percursos e alargados os horizontes, a viagem aproxima-se do seu desfecho.
Desligam-se as luzes. Olhos fixados no fundo da sala, onde se projetam sombras, numa tela. Não correspondem à realidade pura. Por isso, há que saber ver para lá dessas “sombras”, há que saber desvelá-las.
“Frankenstein”, enquanto criatura, nasce de um desafio a Deus, como um projeto amaldiçoado de um genial cientista que ultrapassa os limites impostos pela condição humana.
O que acontece, porém, quando o Homem viola as leis de Deus ou da Natureza e da Ciência?
O que sobrevém a “Prometeu” quando ousa desafiar os deuses e lhes subtrai o fogo divino para o confiar aos humanos?
Haverá limites para o conhecimento e para o progresso científico e tecnológico?
Assim como o cientista criador e “Frankenstein” – a criatura que nasceu do desafio a Deus e às leis da Natureza – poderão vir a confrontar-se, também a nossa cultura científico-tecnológica comporta riscos que não devem ser negligenciados. Ciência e técnica sim, mas com consciência, subordinadas à reflexão ética.
No seu laboratório privado, o genial cientista tem as ferramentas de que necessita para concretizar o seu projeto: diversos membros e dorsos humanos roubados de uma morgue. Peça por peça, começa a sua experiência. Construído como um boneco e provido de vida por uma poderosa descarga elétrica, a sua magnífica criação torna-se assustadoramente real. Ainda mais assustado que o seu criador humano, o ser desaparece na noite, desamparado, repugnante e vulnerável.
Pode dizer-se que a criatura foi lançada no mundo, num mundo que lhe é de todo estranho. O exterior é-lhe opaco e estranho. Sente-se, por isso, como um estrangeiro.
A história não é real. Trata-se de mera ficção. Todavia, constitui uma experiência mental capaz de ilustrar um conceito filosófico central:
o conceito de absurdo.
Segundo muitos filósofos, o absurdo é a característica definidora da existência humana. Tal é o caso dos existencialistas franceses, Albert Camus e Jean Paul Sartre.
Tal como em “Frankenstein”, no homem o ab-surdo nasce do confronto entre o seu apelo, o seu grito e o silêncio irracional do mundo. Este silêncio significa, segundo Camus, que a existência humana não tem sentido. O absurdo expressa a relação do eu com o mundo, sendo experienciado como um divórcio entre o homem e a sua vida. O ser humano deseja a unidade, o absoluto, a salvação, a tranquilidade espiritual e depara-se apenas com a pluralidade, a contingência, o fracasso, o sofrimento e a finitude.
Camus integra-se na corrente ateísta do existencialismo. Como tal, nega a existência de Deus. Neste sentido, a existência humana carece de sentido, dada a inutilidade do sofrimento, o caráter hostil da natureza e a inevitabilidade da morte.
Em suma: o Homem e o monstro, “Frankenstein”, possuem a mesma condição existencial. Sentem-se estrangeiros, exilados em corpos e em mundos que lhe são estranhos e sem sentido.
Porém, confrontado com o absurdo da sua existência, tal não significa que o Homem deva optar pelo suicídio. Pelo contrário: deve preferir viver com lucidez o instante a fim de conquistar mais liberdade.
Ou, como diria Sartre, não possuindo nenhuma identidade a priori, o Homem ex-siste primeiro, surge no mundo e define-se posteriormente. Numa frase: a existência precede a essência.
Não havendo sinais no mundo nem Deus nem nenhuma moral que possa indicar o que se deve fazer, o Homem é um agente criador de si mesmo, pelas decisões que toma e pelos atos que põe em prática, estando, por isso, condenado a ser livre.
Enfim, cerram-se as cortinas. Eis-nos chegados ao termo da nossa viagem!
